A decisão até parece boa para empresas de aplicativos: a juíza Shirley Aparecida de Souza Lobo Escobar, da 37ª Vara do Trabalho de São Paulo, considerou improcedente o pedido do Ministério Público do Trabalho (MPT-SP) para reconhecer o vínculo empregatício de entregadores do iFood. Na prática, isso significa que esses trabalhadores não têm direito a carteira assinada, férias, 13º ou cobertura previdenciária em caso de acidente. Mas especialistas em Direito Trabalhista dizem que essa novela está longe de ter um epílogo, pois há várias decisões com entendimento contrário tramitando em outros tribunais e instâncias.
Para a juíza, o tipo de trabalho prestado por entregadores do iFood se assemelha ao autônomo, ou seja, o funcionário é patrão dele mesmo. Esse é justamente outro ponto de divergência. O professor de Direito do Trabalho Guilherme Feliciano afirma que esse tipo de trabalho está longe de se assemelhar ao autônomo, já que o entregador ou motorista sofrem constante vigilância e fiscalização dos aplicativos. “Essas pessoas são avaliadas pelos clientes dos aplicativos e os aplicativos sabem quanto cada um trabalha por dia, incentiva inclusive que eles trabalhem mais horas.”
O que disse o iFood? A empresa disse que a “decisão, sem precedentes no país, mostra uma Justiça que entende que na nova economia, diferentes oportunidades de trabalho são geradas, e o direito deste profissional de escolher como e quando trabalhar deve ser respeitado”.
“Celebramos essa decisão histórica no país e no mundo que preserva o direito de profissionais optarem por atuar de forma flexível e destaca que a economia está mudando com as novas tecnologias”, diz em nota Fabricio Bloisi, CEO do iFood. “Temos que pensar juntos em como criar leis modernas que, ao mesmo tempo, gerem a estes profissionais renda, oportunidade e bem-estar, trazendo crescimento e desenvolvimento econômico ao nosso país.”
Em que contexto foi dada essa decisão? O MPT ajuizou uma série de ações civis públicas pedindo o reconhecimento do vínculo empregatício de entregadores e motoristas de aplicativos. Procurado, o MPT informou que aguarda a notificação da sentença. “Afirma, porém, que a convicção da tese defendida pelo órgão está robustamente firmada em autos de infração, minuciosos relatórios de fiscalização, depoimentos e provas produzidas em juízo, entre outros. Desta forma, irá recorrer da decisão de primeira instância.”
Qual o tamanho desse mercado de trabalho? A PNAD, do IBGE, não mede exatamente o total de trabalhadores de aplicativos. Mas a estimativa é que 3,8 milhões de pessoas desempenhem sua principal atividade dentro de um carro. Parte desse número diz respeito aos motoristas de Uber, 99 e Cabify. Somando os entregadores de aplicativos, Feliciano diz que a conta chega a 4 milhões de pessoas. Mas como são pessoas sem carteira assinada, é difícil chegar a um número preciso de empregados nessa atividade.
Como esse mercado cresceu tanto? Primeiro, esse tipo de emprego se expandiu em um cenário de desempregado elevado. Para conseguir renda, as pessoas aceitam trabalhar mesmo sem carteira assinada ou a garantia de um salário mínimo.
O que dizem os especialistas? A advogada trabalhista Cláudia Abdul Ahad Securato, sócia do escritório Securato e Abdul Ahad Advogados, diz que não existe um consenso nesse assunto. “Em dezembro teve outra decisão, numa ação igualzinha a essa, e a Justiça decidiu contra a Loggi. O caso ainda não está encerrado”, afirma ela.
Essa é a mesma opinião do advogado André Rodrigues Schioser, do escritório Gasparini Nogueira de Lima Barbosa Advogados. “Tem agora essa decisão importante pró-iFood, mas o assunto não está pacificado. Isso só vai acontecer quando subir pro TST (Tribunal Superior do Trabalho) e nem assim a divergência pode ser encerrada. Se entenderam que é matéria constitucional, o tema ainda pode ir para o STF (Supremo Tribunal Federal).”
Tanto Securato quanto Schioser entendem que a decisão que não reconhece o vínculo empregatício foi acertada. “Acho q é uma relação de trabalho autônomo, a pessoa tem liberdade para escolher dias e horários em que quer trabalhar, se o preço é justo ou não. E se o vínculo for reconhecido, existe o risco de a pessoa perder o emprego”, diz Securato.
“Se assemelha ao trabalho autônomo, já que a pessoa pode recusar o trabalho, pode não ligar o aplicativo”, afirma Schioser.
Mas todos pensam assim? Não mesmo. Feliciano, autor do livro Infoproletários e a Uberização do trabalho, diz que existe um vácuo na legislação trabalhista que deixou esse tipo de atividade sem nenhum tipo de proteção. Segundo ele, ao se autodenominarem empresas de tecnologia, esses aplicativos tentam evitar o vínculo empregatício. “Mas quem chama o Uber é porque precisa de um motorista, a tecnologia é o meio, não o objetivo. Essa nova organização dificulta até mesmo o ajuizamento de ações contra essas empresas, já que se não há vínculo, a espera que cuida do caso não é a trabalhista.”
Para preencher um pouco desse vácuo, Feliciano sugere que seja criado um código mínimo de proteção para esses trabalhadores. “Toda atividade exige um padrão mínimo de segurança para ser prestada. Essas pessoas não podem trabalhar mais de 15 horas por dia sem que esse risco à segurança seja prejudicado.”
Segundo ele, a questão do vínculo empregatício não dá para se estabelecer de forma automática. “Uma pessoa que prestou serviço duas vezes em seis meses não tem a mesma relação trabalhista de outra que dirige ou entrega 15 horas por dia, de segunda a domingo.”
O que disseram outras empresas de aplicativos?
Rappi: “A Rappi é um superaplicativo que conecta quatro elos: o cliente final, os estabelecimentos parceiros, a indústria e os entregadores parceiros, que são profissionais independentes. Eles podem ser pessoas físicas ou jurídicas e atuam por conta própria, portanto, não há relação de subordinação, exclusividade ou cumprimento de cargas horárias.”
Uber e Uber Eats: não comentou
Tem solução para esse impasse? Para o supervisor técnico do Escritório Regional do Diesse em São Paulo (ER-SP), Victor Pagani, a discussão vai além do reconhecimento empregatício. “É preciso garantir um mínimo de proteção social para esses trabalhadores. Eles se acidentam e não têm nenhum tipo de seguro.”
A primeira saída, segundo ele, seria garantir que essas pessoas fizessem alguma contribuição previdenciária para garantir cobertura para acidentes e direito à aposentadoria.
Pagani vê esse tipo de trabalho como um passo seguinte à terceirização. Segundo ele, as profissões de entregador e motorista já existiam, mas antes eram prestadas de forma terceirizada. “Essas empresas de aplicativos chegaram, de início ofereceram vantagens, e dominaram essas atividades. Mas elas transferem toda responsabilidade e custo do serviço para o trabalhador.”
Matéria por Fabiana Futema , 6 Minutos – São Paulo 28/01/2020 – 16:54
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